Boa memória X vaga lembrança

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Cem anos de vida é muita coisa. Há poucas décadas, não se vivia tanto. Nos anos 1950 e 1960,  um homem com 50 anos era considerado um homem velho. E poucos chegavam a essa idade.

Com o progresso da ciência, mais e mais pessoas chegam facilmente aos 80, 90, 100 anos. Daniel Sapateiro completou 100 anos de vida com saúde e lucidez de fazer inveja a muito Rui  Figueiredo.

Conheço seu Daniel desde que me entendo por gente. No balcão da loja de meu pai, muitas  vezes vendi-lhe ilhoses, botões rápidos, tachinhas, tinta Tic-Tac, mantas de vaqueta e saltos para sapatos.

Há sete anos, quando seu Daniel comemorava 65 no ofício de sapateiro, eu, jornalista, fui  entrevistá-lo para reportagem no jornal Roraima Hoje. Tarde agradável conversando com o  paraibano de Cajazeiras.

Falou-me sobre sua vida no Nordeste, sua vinda para Boa Vista, o casamento, a aquisição do  imóvel onde vive até hoje, a alegria com o nascimento do único filho, a felicidade de ainda ter irmãos.

Na época, com 93 anos, seu Daniel disse-me ter ido a Brasília, onde participou da festa de 100  anos de sua irmã mais velha. Família longeva, Santa, a mana, morreu em 2014 com 108 anos de idade.

Durante a entrevista, seu Daniel explicou-me que raramente algum freguês deixava de vir  buscar os sapatos deixados para serem reparados: “As pessoas se apaixonam por sapatos de qualidade e querem que eles durem a vida inteira”, explicou-me.

Ele não soube me dizer como fazia para encontrar um calçado deixado há muito tempo, mas disse que a mão ia certa na prateleira e buscava o que ele queria.

Lá pelas tantas, seu Daniel me perguntou:

– Você é ou foi casado com dona Maura – uma mulher bonita que trabalha na Educação?

– Sim…

– Faz tempo “que não vejo ela”…

– É, seu Daniel: Maura está morando em Brasília desde 2005; por quê?

Seu Daniel levantou-se e pegou um saco plástico na prateleira. Entregou-me o pacote e, nele, estava escrito: MAURA PINHEIRO, 03/08/2004, R$ 16,00. Sorri e rcomentei:

– Maura sempre foi desligada. Vou pagar pelo seu serviço e levar os sapatos pra ela em minha  próxima viagem ao Distrito Federal.

….

Dias depois, em Brasília, abri minha mala e entreguei aquele pacote para Maura. Ela abriu o  saco plástico e, ao ver o velho par de sapatos, sacudiu os ombros:

– Não entendi…

– Tu mandaste consertar esses sapatos em 2004. Seu Daniel Sapateiro me alertou sobre o  esquecimento. Paguei pelo serviço e  trouxe-os pra ti, pois devias gostar muito deles.

Maura não se lembrava dos sapatos. Claro, também não se lembrava de tê-los mandado para conserto e afrimou ter uma vaga lembrança de seu Daniel.

Se ela chegar aos 100 anos, certamente não terá a mesma lucidez de Daniel Sapateiro.

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